Paladar
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1. Introdução
Paladar é o sentido responsável pela detecção do sabor dos alimentos dentro da boca. É bem verdade que utilizamos frequentemente termos como “gosto” e “sabor” como sinônimos de paladar. Isso acontece porque essa percepção dos alimentos, de fato, é mais complexa, envolvendo os outros sentidos que adicionam cheiro, textura e temperatura à experiência. Uma vez captados, esses estímulos ainda serão modulados pela memória e classificados pela sua capacidade de proporcionar prazer.
O que será tratado aqui é apenas o mecanismo que permite a detecção de substâncias químicas provenientes dos alimentos dentro da cavidade oral e como ele é codificado até atingir o sistema nervoso central.
As estruturas sensoriais presentes principalmente na língua são capazes de distinguir cinco modalidades de sabores: doce, salgado, umâmi, azedo e amargo. É importante também registrar que esses serão os termos utilizados ao longo desse texto, mas eles estão estreitamente relacionados à experiência humana de classificar uma miríade de sabores e nossa relação com os alimentos e a alimentação é muito mais complexa que a dos outros animais.
Doce, salgado e umâmi são considerados sabores, a princípio, agradáveis e refletem a presença de nutrientes essenciais para o corpo: carboidratos, sódio e aminoácidos. Umâmi é uma palavra de origem japonesa que significa “gosto delicioso” e que podemos exemplificar por aqueles alimentos que contêm o realçador de sabor glutamato de sódio. Azedo e amargo podem indicar, respectivamente, a presença de ácido e de substâncias tóxicas no alimento. O acoplamento da detecção da presença de todos esses compostos nos alimentos a um mecanismo de prazer ou repulsa no sistema nervoso determina uma ação imprescindível para a garantia de aquisição de nutrientes ou de proteção do corpo: a deglutição ou a rejeição do alimento.
2. Estrutura anatômica relacionada ao paladar
O principal órgão responsável pela detecção do sabor dos alimentos nos mamíferos é a língua. A superfície da língua é dotada de diferentes tipos de papilas, ou seja, pequenas projeções do revestimento do órgão para cima ou para dentro da superfície. Muitas papilas têm função mecânica, com capacidade sensorial para textura, consistência e temperatura, e para ajudar a prender e orientar o movimento do alimento dentro da boca, dentre outras funções particulares em cada espécie. Papilas do tipo foliácea, fungiforme e circunvalada são chamadas papilas gustativas por serem dotadas de estruturas cuja função é detectar substâncias químicas provenientes dos alimentos. As papilas gustativas são repletas de botões gustativos espalhados dentro de seu revestimento e que têm contato com o ambiente externo através de um poro. Os botões gustativos são formados por um aglomerado de células receptoras, em formato fusiforme, que apresentam microvilos em seu ápice, voltados para a abertura do poro. Na membrana dos microvilos, encontram-se as proteínas que contêm um sítio de ligação para o nutriente ou composto químico a ser detectado.
Embora em menor número, botões gustativos também podem ser encontrados no palato e na epiglote.
Os nervos envolvidos na condução do paladar até o sistema nervoso central são os pares de nervos cranianos facial (VII), glossofaríngeo (IX) e vago (X). A atuação desses nervos no processo de detecção dos sabores será discutida adiante.
3. Histologia do paladar
Cada botão gustativo tem entre 50 e 100 células de origem epitelial, que podem ser de três tipos: as células receptoras, as células sustentaculares e as células basais. As células receptoras, portanto, não têm origem nervosa, elas apenas fazem a mediação entre as substâncias químicas detectadas e os neurônios sensoriais cujos axônios se espalham pela base dos botões gustativos. Células receptoras e sustentaculares têm formato fusiforme e sua vida útil aparentemente varia entre 8 e 12 dias; por isso, são constantemente renovadas a partir de divisões mitóticas das células basais. Curiosamente, os botões gustativos involuem à denervação. As papilas do tipo circunvaladas são as mais ricas em botões gustativos.
4. Fisiologia do paladar
A saliva tem o papel de solubilizar os compostos químicos que estimulam as células gustativas. Em solução, eles alcançam mais facilmente os receptores destas células.
É importante lembrar que receptores sensoriais, ao serem estimulados, não produzem diretamente um potencial de ação, mas sim um potencial gerador ou receptor. Potenciais de ação são ativados pela ação de canais de sódio controlados por voltagem com características bastante específicas. Uma delas é que a passagem para os íons só será aberta se o potencial da membrana atingir um determinado limiar. O potencial receptor representa uma despolarização na membrana, em uma local apropriado e, apenas quando o estímulo for intenso o suficiente, o limiar será atingido e o potencial de ação será disparado.
As células receptoras são de três tipos: tipo I, semelhantes a células da glia e suspeita-se que possam detectar baixas concentrações de sódio; tipo II, que detectam doce, amargo ou umâmi; e tipo III, que detectam azedo e salgado.
O sabor salgado é reconhecido quando o sódio entra nas células receptoras através de canais iônicos, provocando uma despolarização da membrana. A propagação da onda de despolarização acaba por induzir a abertura de canais de cálcio controlados por voltagem nas porções basolaterais da membrana celular. O aumento da concentração de cálcio intracelular provoca a liberação de neurotransmissores de vesículas sinápticas, ativando neurônios sensoriais. Ânions também podem ser detectados, porém em menor extensão. O sabor ácido também envolve um tipo de canal para sódio, mas que depende de estímulo para se abrir.
Substâncias doces atuam sobre receptores acoplados a proteína G, que ativam uma cascata de sinalização intracelular envolvendo fosfolipase C, inositol-trifosfato, diacilglicerol, cálcio armazenado no retículo endoplasmático, canais de sódio e, por fim, liberação de ATP para o exterior da célula. O ATP atuará como neurotransmissor ligando-se aos receptores purinérgicos do neurônio sensorial. Os receptores para sabores amargo e umâmi também atuam via proteína G.
Acredita-se que boa parte dos mecanismos de detecção de sabores ainda esteja por ser descoberta. Estuda-se ainda a possibilidade de percepção sensorial via paladar de ácidos graxos, cálcio e um tipo de sabor denominado kokumi.
Os neurônios sensoriais envolvidos na transmissão dos estímulos gustativos são do tipo bipolar e correm pelos pares de nervos craniais facial e glossofaringeal. O corpo celular desses neurônios está localizado, respectivamente, nos gânglios geniculado e distal. Axônios periféricos partem desses gânglios e alcançam a língua pelo nervo lingual.
Esses neurônios sensoriais, ou de primeira ordem, fazem sinapses no núcleo do trato solitário do bulbo com neurônios de segunda ordem, que ascendem pelo trato solitariotalâmico até o núcleo posteromedial ventral do tálamo.
A informação trazida pelos neurônios sensoriais relacionados ao paladar pode ser distribuída por, no mínimo, quatro regiões do sistema nervoso: núcleos motores responsáveis por reflexos de ingestão ou rejeição; núcleos que controlam o que chamamos de fase cefálica da digestão, ou seja, reflexos que partem do sistema nervoso central para dar suporte à digestão; córtex gustativo primário para discriminação dos sabores; e córtex gustativo secundário, amígdala e hipotálamo para a elaborar a sensação de prazer (ou não) associada ao sabor detectado da substância ingerida.
5. Evolução e Diversidade do Paladar
A adaptação das espécies em seus próprios nichos alimentares refletiu na distribuição dos tipos de botões gustativos em sua língua. O número de botões gustativos na língua varia muito entre as espécies. Gatos domésticos e selvagens – carnívoros estritos – são menos sensíveis ao sabor doce e mais sensíveis a ácidos graxos e aminoácidos. Pandas gigantes, por sua vez, embora façam parte da Ordem Carnivora, são herbívoros. Nesses animais, receptores para o sabor doce são funcionais, enquanto o umâmi quase não é percebido. Em cães, a percepção do salgado é mais baixa, o que pode indicar que o tipo de dieta a que essa espécie se adaptou supriria a demanda de sais de forma adequada. A percepção de sabores não difere muito entre humanos e outros primatas, havendo apenas variação na tolerância a alguns componentes, de forma muito proporcional aos seus tipos de dieta. Em aves, o sentido do paladar é notavelmente diferente dos mamíferos. Aves produzem menos saliva e o alimento fica menos tempo na boca. Os receptores para o sabor “doce” são reduzidos, mas parece que, na maioria das aves, receptores para aminoácidos podem ter se adaptado para detectar carboidratos. Os botões gustativos das aves estão distribuídos principalmente no palato e na base da cavidade oral.
Sistemas de quimiocepção similares aos que detectam o sabor dos alimentos na cavidade oral estão presentes também em outras partes do corpo, compartilhando receptores expressos a partir dos mesmos genes. O trato gastrointestinal, por exemplo, é repleto desses receptores. Não é por isso que podemos dizer que o intestino participa do paladar. O sentido que permite a detecção de sabores é próprio dos órgãos gustativos presentes na língua (e algumas vezes em outras estruturas próximas) envolvendo os nervos e os tratos anteriormente mencionados. No estômago e no intestino, esses sistemas participam da regulação da função de cada órgão no processo de digestão e absorção ao monitorar a presença de nutrientes. Em camundongos, receptores de “amargo” no estômago aumentam a secreção de grelina, que, por sua vez, aumenta a ingestão de alimentos e diminui o esvaziamento gástrico. Como esses animais não têm o reflexo do vômito, um aumento inicial de apetite poderia diluir substâncias tóxicas e o mais tempo de permanência do conteúdo no estômago poderia dar chance de serem inativadas pelas enzimas gástricas. Receptores “de sabor” também estão presentes na uretra, nos testículos, no cérebro e nas vias aéreas. É importante reafirmar que o papel aqui não é detectar “sabor” em si; a questão apenas é que são receptores que monitoram o mesmo tipo de substância que as presentes no alimento para desencadear algum efeito próprio de cada órgão.
É bastante conhecido que há diferença na percepção e tolerância dos sabores entre indivíduos da mesma espécie. Essas diferenças podem se dar por idade, sexo, fatores subjetivos e genética. A área de superfície, a distribuição dos “sabores” em solução na saliva e sua concentração nas fases líquida e gasosa (neste caso, para alcançar os terminais olfativos) são dinâmicos e os indivíduos apresentam variação na respiração, salivação e deglutição. Variações genéticas nos receptores gustativos já são reconhecidas como causa da variabilidade na aceitação de alguns sabores, principalmente para o sabor amargo.
6. Conclusão
O paladar é um sentido complexo que envolve não apenas a detecção de substâncias químicas pelos receptores gustativos na língua, mas também sua integração com outros sentidos, memória e emoções para gerar experiências únicas. Essa funcionalidade é essencial para a sobrevivência, orientando a ingestão de nutrientes e a rejeição de substâncias potencialmente tóxicas. Além disso, a presença de receptores similares em outros órgãos evidencia a versatilidade desses mecanismos na regulação de funções corporais. Embora muito já tenha sido descoberto, a fisiologia do paladar continua sendo um campo de pesquisa dinâmico, com novas descobertas ampliando nosso entendimento sobre sua influência na saúde, comportamento e adaptação evolutiva.
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